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terça-feira, novembro 04, 2003

RITUAL E ARTE: ELEMENTOS CÊNICOS PRESENTES NAS LITURGIAS DOS CULTOS AFRO-BRASILEIROS E SUA RELAÇÃO COM O TEATRO OCIDENTAL



Autora: Elizabeth Firmino Pereira. Orientador: Prof. Dr. Reynuncio Napoleão de Lima. Co-orientação: Prof. Dr. Sikiru Salami e Prof. Dr. Flávio Mário de Alcântara Calazans.- Ed. Artística/ Cênicas – DACEFC – Instituto de Artes da UNESP– Campus de São Paulo.
*Trabalho realizado com bolsa de IC concedida pela FAPESP, no período de Dez./2002 a Nov./2003.

Contact: beth_firmino@yahoo.com.br

Abstract: The research analyzes the liturgical structure of the afro-brasilian rituals present in oriki (evocations), orin (ballads), adurá (prayers), Itàn (Ifá’s epic poems) and dances, by analogy with theatrical signs. It’s a research related to Etnoscenology, a new science that approaches the scenic arts to the Etnology. The theoretical researches are carry out in both areas, as well as the field researches. The field and theoretical researches in temples are present in both fases. The research about theater is divided in two parts: the first one corresponds to the Greek Theater and pre-tragic rituals. The second one is focused on the study about the contemporary theoreticals and creators who used sacred or epic elements in their works, like: Grotovski, Artaud, Eugênio Barba and Brecht, under a critical perspective. Join to this study it will carries out a field research - interviews with directors and actors that use similar elements in their current creations. It intends to identify similarities between both areas and launch a different view over the afro-brasilian religions universe, through an artistic optical, in a cultural valorization perspective. On the other hand, it intends to supply useful elements and theoretical materials to art researches that are interested in this area. In the future, this research can be unfold, including the theatrical practice.

Keywords: Etnoscenology, Black People, Theatrical Anthropology, Afro-brasilian Worships, Epic Theater.

1) Resumo:
O trabalho analisa a estrutura litúrgica dos rituais afro-brasileiros, presentes nos oriki (evocações), orin (cantigas), adura (rezas), Itan (poemas épicos de Ifá) e danças, em analogia com os signos teatrais.
Pesquisa na área de Etnocenologia, nova ciência que aproxima as Artes Cênicas da Etnologia. As pesquisas teóricas são realizadas nas duas áreas, bem como as pesquisas de campo.
A pesquisa de campo nos terreiros e a teórica estão presentes nas duas fases. A pesquisa sobre teatro está dividida em duas etapas: a primeira, corresponde ao teatro grego e aos rituais pré-trágicos. A segunda é centrada no estudo de teóricos e criadores contemporâneos que utilizaram elementos sagrados e/ou épicos em suas obras, entre eles Grotóvski, Artaud, Eugênio Barba; e Brecht, sob uma perspectiva crítica. Juntamente com este estudo, será realizada a pesquisa de campo – entrevistas com diretores e atores que utilizam elementos semelhantes em suas criações atuais.
Pretende-se identificar semelhanças entre as duas áreas e lançar um olhar diferenciado sobre o universo das religiões afro-brasileiras, pela ótica da arte, numa perspectiva de valorização cultural.
Por outro lado, pretende-se fornecer elementos úteis e material teórico aos artistas pesquisadores interessados nesta área.
Futuramente, esse trabalho poderá ter desdobramentos, inclusive na prática teatral.

Palavras chaves: ETNOCENOLOGIA, NEGRO, ANTROPOLOGIA TEATRAL, CULTOS AFRO-BRASILEIROS, TEATRO ÉPICO.

2) Introdução:
O trabalho é voltado para o estudo dos rituais afro-brasileiros e suas relações com o teatro ocidental. Por ser realizada na área de Etnocenologia, a investigação busca ampliar as discussões do segmento negro e seus rituais para os âmbitos da cultura e da arte. Visa encontrar elementos comuns entre os rituais afro-brasileiros e as artes cênicas, com o devido respeito às particularidades de cada cultura e, considerando-os em pé de igualdade, estabelecer uma análise livre dos limites etnocêntricos, que possa ser útil tanto ao teatro como ao segmento negro; propõe-se uma via de mão dupla.
Embora haja uma vertente do teatro contemporâneo voltada para o estudo do teatro oriental e dos rituais, representada por Grotóvski, Eugênio Barba, Artaud, Peter Brook, entre outros e Brecht, numa perspectiva crítica, pouco foi estudado sobre o segmento negro, afro-brasileiro ou africano, em relação ao teatro até o momento. Embora algumas pesquisas nesse sentido comecem a despontar, ainda é um campo pouco explorado pela arte, apesar do rico material, guardado por tradições milenares no seio da religiosidade.
Os elementos cênicos a serem analisados são os cantos, as danças e os mitos, narrados por oriki (evocações), adura (rezas), orin (cantigas) e Itan, corpus literário e poético de Ifá, narrativas épicas da história mitológica da cultura yorubá.
Nesse sentido, o Brasil representa um campo muito fértil, pelas tradições aqui preservadas nos terreiros de candomblé e pelos processos de renovação e reafricanização, promovidos por novos vínculos com a África, na figura de pesquisadores como Pierre Verger e de africanos como Sikiru Salami, que trazem para cá suas tradições, introduzindo cultos esquecidos no Brasil, como Ifá, Iya Mi Oxorongá, Egbé, Gueledé etc.
No que se refere ao teatro, o estudo é feito desde as origens da tragédia grega, nos rituais pré-trágicos e nas narrativas homéricas, até o teatro contemporâneo, na figura de teóricos já citados e encenadores atuais. A pesquisa abrange também trabalhos que estão sendo realizados por atores, bailarinos e pesquisadores com base nos rituais afro-brasileiros e em rituais de um modo geral.
O objetivo é lançar novas discussões sobre o legado da cultura negra preservado nos rituais, através do estudo da arte abordar questões relativas à identidade de uma de nossas matrizes culturais. Por outro lado, busca-se ampliar as possibilidades da pesquisa e da realização artística, lançando luz sobre um rico material, pouco estudado. Em outra instância, interessa, também, acompanhar o procedimento metodológico das poucas pesquisas existentes na área, realizada por atores, bailarinos e diretores, no que diz respeito às particularidades exigidas pelo trabalho nesse campo.

3) Metodologia:
A metodologia utilizada corresponde ao esforço interdisciplinar de abordar e, aproximar, duas áreas distintas do conhecimento humano, as Artes Cênicas e a Etnologia, procurando atender às necessidades específicas da pesquisa em cada uma delas. Corresponde a pesquisa teórica e de campo, tanto em teatro como nos rituais afro-brasileiros.
À pesquisa de campo correspondem visitas a terreiros e rituais públicos, assim como a espetáculos teatrais e manifestações culturais afins. Na ocasião dessas visitas, serão realizados registros em foto, vídeo e áudio, quando autorizados, e entrevistas com participantes dos cultos e atores.
A pesquisa nos terreiros corresponde aos moldes da observação participante, procedimento comum na Etnologia e na Antropologia, como bem descreve Silva (1998). Fator determinante é minha experiência pessoal na área, pelo contato que tenho com terreiros de candomblé há 15 anos, sendo ‘iniciada’ ao culto há 13 anos, e tendo, portanto, acesso a conhecimentos que não poderiam ser adquiridos em pouco tempo. Tais conhecimentos servem de “filtro” e direcionamento das informações coletadas, além de possibilitar acesso a locais de culto. Essa particularidade promove uma observação ‘desde dentro’, questão amplamente discutida na área de Ciências Sociais, mas que, sem dúvida, oferece perspectivas de uma abordagem mais profunda e voltada a novas questões.
A pesquisa teórica segue a bibliografia existente sobre teatro e cultos afro-brasileiros, analisados separadamente, pois são poucos os estudos aproximando as duas áreas; além da participação em palestras, seminários, exposições, workshops etc, que tratem de temas afins e possam contribuir com o trabalho.
A pesquisa foi dividida em duas fases: na primeira, a ênfase é sobre as origens da tragédia grega e as relações com a cultura e os rituais afro-brasileiros; na segunda fase, o estudo é sobre o teatro contemporâneo e a ‘retomada’ de elementos ritualísticos na concepção estética, as relações com os rituais afro-brasileiros e os elementos cênicos aí presentes continuam sendo estudados.

4) Resultados:
No atual estágio da pesquisa, com a primeira fase concluída e a segunda em andamento – com previsão de conclusão para nov./2003 – como resultado parcial, pode ser realmente constatada grande semelhança entre os rituais afro-brasileiros e o nascimento da tragédia grega. Primeiramente, podemos destacar a importância do ‘mito’ e da ‘narrativa oral’, presentes nas duas culturas, como elemento formativo, educacional e social. O valor atribuído aos rituais e oráculos é relevante tanto na Grécia antiga como na sociedade yorubá, como pode ser constatado em Édipo Rei, de Sófocles, onde o ‘oráculo’ torna-se o eixo central do enredo. Na cultura yorubá, os Itan (corpus literários composto por poemas épicos de Ifá, ou Orumilá) cumprem essa função oracular e, também, educativa. Ifá (ou Orunmilá)é, ao mesmo tempo, o nome de um orixá e de um oráculo, composto por narrativas em forma de versos sobre a vida de personagens míticos, a sociedade e a história mitológica do povo yorubá. Seus sacerdotes passam por longos anos de preparação, onde aprendem a recitar mais de 4.000 poemas, relativos a 256 Odu (signos do ‘destino’, apresentados de forma poética, ritmada e rimada, em yorubá arcaico) sem o uso de registro escrito, e a manipulação dos oráculos, que serão ‘respondidos’ através desses versos.
Essa tradição sobreviveu de maneiras diferentes no Brasil, em Cuba e na África; aqui ficou mais restrita ao ‘jogo de búzios’. As narrativas míticas foram preservadas em forma de cantigas, rezas, ‘fundamentos’ e nas danças sagradas dos orixás, no interior dos terreiros de candomblé.
Podemos notar que a presença da dança e do coro cênico como elementos ritualísticos, em ambas as culturas, e o culto a deuses ligados à natureza, de características bastante ‘humanizadas’, fornecem indicativos visíveis de afinidades e de semelhanças entre as duas culturas.
De acordo com vários autores, podemos afirmar que a tragédia grega surgiu dos rituais de transe coletivos e públicos, como nos cultos de Dioniso, tendo suas origens nas amplas narrativas épicas, posteriormente compiladas por Homero e transformadas em dramaturgia com o surgimento da escrita, por volta do séc. V a C.
A tradição africana é basicamente oral e ritualística, o surgimento da escrita yorubá é fato recente e o oráculo desempenha, ainda hoje, papel fundamental na estrutura religiosa afro-brasileira e nas sociedades tradicionais yorubá. Assim como na arte e, na Grécia antiga, a forma de pensar a cultura é mais voltada aos elementos simbólicos e intuitivos, que aos puramente racionais. Esses elementos comuns, certamente, interessaram a muitas pessoas de teatro, como a Anatol Rosenfeld (1993) e a atores que atualmente desenvolvem pesquisas na área.
Entre os grupos que abordaram ou pesquisam os rituais afro-brasileiros, podemos destacar o LUME – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas da Unicamp, Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, Teatro Vento Forte, A Caixa de Fuxico, Teatro Oficina e tantos outros. A maioria desses trabalhos apresenta elementos formais, ou estéticos, dos rituais bastante visíveis, com referências claras da cultura afro-brasileira, dos orixás do candomblé às ‘entidades’ da umbanda, incorporadas ao espetáculo.
O LUME, optou por não trabalhar com a forma, mas aprofundar os estudos iniciados por Luis Otávio Burnier com Grotóvski, sobre ‘energia’; que o grupo chama de ‘corpo dilatado’. Todas as pesquisas que realizadas pelo LUME no candomblé, durante sete anos, foram em torno desse tema. Esses princípios, relacionados à qualidade da energia no trabalho de ator, também foram trabalhados por Carlos Simioni com Iben Nagel, atriz do Odin Theatre, que mantém encontros anuais com um grupo de dez atores de várias partes do mundo. Esses exemplos mostram diferentes possibilidades de se trabalhar com os mesmos elementos.
O nível de envolvimento do ator com o campo pesquisado, no caso o terreiro, também é outro tema que merece atenção, pois, como existe o envolvimento corporal desse profissional no processo de elaboração artística, tende a ser maior do que a simples observação participante, prática corrente na Etnologia e na Antropologia.
O que se espera com a conclusão deste trabalho é a atualização dos conhecimentos nesta área e, através da divulgação dessas informações, contribuir para o avanço das pesquisas em Artes Cênicas e Etnocenologia junto ao segmento negro.

5) Agradecimentos:
À FAPESP, ao meu orientador Reynuncio Napoleão de Lima; aos meus co-orientadores Sikiru Salami (King) e Flávio Calazans; a Vagner Gonçalves da Silva; a Armindo Bião; a Carlos Simioni ( e Lume – Núcleo Interdisciplinar de pesquisas da Unicamp); a Carminda Mendes André e a Joceli Domingas de Oliveira.


6) Referência bibliográfica:
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SILVA, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia: trabalho de campo e texto
etnográfico nas pesquisas sobre as religiões afro-brasileiras. Tese de
Doutorado defendida em 29/05/1998, na FFLCH – Faculdade de Humanas da
USP.

Contact: beth_firmino@yahoo.com.br


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